Entrevista ao Diário de Notícias da Madeira

11-10-2012 22:38

 

«Quem de

manhã a vê rumo ao trabalho, não repara nela. Não porque não seja bonita, bem pelo contrário, mas porque faz questão de passar despercebida no meio da multidão. Sempre apressada, atravessa a rua sem hesitar e desce em direção ao escritório onde trabalha há menos de um mês. Vai feliz porque sabe que o emprego, apesar de temporário, lhe permitirá juntar o dinheiro que lhe falta para a passagem para São Paulo, onde, em novembro, lançará o seu segundo romance, "A Morte é uma Serial Killer". Aqui, na Madeira, ninguém a conhece. Lá, no Brasil, tem nome de escritora, Valentina Silva Ferreira, a protagonista de uma história à medida do tempo da geração digital de um país em crise.
Valentina, como é carinhosamente tratada no Brasil, tem o sorriso inocente de uma menina. Tem apenas 23 anos, mas a sua escrita é crua e nua, fazendo jus à máxima pessoana sobre o poeta ser um fingidor. Lado a lado, jovem mulher e escritora pouco têm a ver uma com a outra. Ela, a jovem, é doce, tímida e contida; a outra, a escritora, é implacável, destemida e chocante. Faz da miséria humana, do terror e do erotismo palco da sua prosa e, talvez por isso, as suas narrativas não sejam para qualquer leitor. No mês passado, na cerimónia de entrega de prémios do concurso sobre contos do escritor Nelson Rodrigues, que decorreu em Paris e que a escritora madeirense venceu entre 116 participantes de toda a Europa, o público corou durante a leitura do seu conto, "Viúva fora do quarto". Valentina ri-se, corando também. "Sinto-me normal nas coisas da vida, só na escrita posso ser um bocadinho especial", explica com a simplicidade de quem escreve para os outros. Não para si. “Obrigo-me a escrever mesmo quando não sinto vontade, porque gosto de inventar, de criar vidas e lugares e, sobretudo, porque gosto de levar os outros comigo nessa viagem.” Todos os dias, por isso, Valentina escreve na solidão do seu quarto. Nem que seja um parágrafo de um conto que nunca terminará. “O treino aperfeiçoa”, acredita. E à conta disso já escreveu contos sinistros que fazem parte de mais de 20 antologias brasileiras e o romance “Distúrbio”, que lhe abriu as portas da editora que a apadrinha.
O Diário encontrou-a na sua casa, no Funchal, onde vive com a mãe e o irmão, presentemente a estudar na Universidade de Coimbra. Ela também estudou lá. Concluiu a licenciatura e o mestrado em Direito, mas não quer ser advogada. O curso ficou aquém das expectativas. Afinal, a realidade é muito mais crua do que a ficção. Também menos moldável. A magistratura é uma hipótese em aberto, porque viver da escrita é praticamente impossível. "Portugal não é um país para sonhadores", constata com a convicção de quem só pôde encontrar o que procurava através da internet. O teclado foi o seu aliado, não o seu país. E por isso não há quem a convença de que não há meta que não se alcance desde que se trabalhe sem desistir e se tenha um computador à mão. Três prémios e uma menção honrosa em concursos literários internacionais, bem como a vasta obra publicada no Brasil são disso exemplo.
Mas a sua história começou antes da era cibernáutica, quando a mãe, a sua referência principal, a obrigava a dormir a sesta após o almoço. A falta de sono e a estante de livros no quarto foram pretexto para a leitura compulsiva que, anos mais tarde, gerou a paixão pela escrita. É claro que a "receita" funcionou com ela, não com o irmão que prefere os números às letras. "Tive sorte em ter a mãe que tenho", confessa espontaneamente. Os professores também a ajudaram, o do 1º ciclo e o de Português do secundário. O resto veio depois. As cartas, as letras de músicas que nunca mostrou a ninguém, os diários, os blogs, o facebook e, por fim, a editora brasileira que, à distância de um oceano, apostou no talento da jovem madeirense que pouco tem de comum com os seus pares de geração. "Não gosto do que a maioria gosta, mas talvez a estranha seja eu", afirma num encolher de ombros que reflete a segurança de quem sabe o que quer. "Acho que sou uma rapariga do mundo porque não quero ficar confinada à falta de realizações que este país tem para mim, à escassez de licenciaturas que as faculdades oferecem, à circunscrição de experiências de vida que, quer queiramos, quer não, é influenciada pela reduzida dimensão territorial e social de Portugal." É por isso que, segundo diz, vive "entre o querer ir e o ficar". O ficar porque a sua âncora é a mãe, mulher divorciada que a incentivou a nunca desistir. “Sou menina de casa e, ao mesmo tempo, do mundo.” Um mundo que conhece através dos olhares de um Edgar Allan Pöe, de um Lovecraft, de um Stephen King, de um Vladimir Nabokov – “’Lolita’ é o meu livro de cabeceira” –, de um Nelson Rodrigues e, claro está, de José Saramago.
De malas aviadas para o Brasil, terra desconhecida onde a aguarda o périplo promocional do seu segundo romance, Valentina trabalha há mais de dois anos para pagar a viagem que tornará real o que até hoje é virtual. Não espera favores de ninguém, muito menos de um país em crise. “Não vale a pena chorar o que se perdeu ou nunca se teve, o que é preciso é ir à procura do que se quer.” Assim sendo, quando se lhe pergunta se não tem receio de ir, sorri. “Não”, responde sem hesitar. “O Brasil gosta de mim!”»